domingo, 23 de novembro de 2025

Papel-Químico

  Lembro-me bem daquele dia em que encafuados nos casacos e enfaixados nos cachecóis marcávamos o passo pela calçada abaixo de mão dada. O vapor da nossa respiração confundia-se com o fumo das castanhas assadas enquanto chegámos à esquina da praça. Não era o ano mais farto da história da cidade e isso reflectia-se na menor quantidade de luzes nas ruas. Felizmente os cidadãos sabendo das dificuldades da urbe decidiram colorir as suas janelas com luz e cor, pois embora a estação assim o pedisse, o brio cívico falava mais alto.

Canções familiares ecoavam nas lojas e nas ruas por entre transeuntes apressados para chegar a casa. Em autocarros e eléctricos decorados a rigor pude ver as faces de miúdos e graúdos enfeitiçados pelo brilho dos artesãos da luminária. Todos eles crianças deslumbradas vez após vez como se um feito de magia lhes tivesse sido  apresentado.

Tu largaste-me a mão para me agarrares o braço com as duas mãos e para te apoiares em mim enquanto caminhávamos. Querias estar mais próximo de mim e eu de ti. Eu que pouco mais tinha para te oferecer do que a meia dúzia de tostões no bolso e a minha companhia, senti-me  em êxtase por teres aceitado o convite para passear.  

No fim da rua principal esperei que olhasses para cima em contemplação do efeito dominó dos arcos reluzentes e lentamente sussurei-te ao ouvido "Era este o meu sonho! O de ver as luzes de natal contigo para te dar esse sorriso que te faltava à tanto tempo!" Sorriste amplamente duma forma cândida mas não respondeste. O teu olhar já tinha dito tudo.

quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Eles

 Empurram-te vezes sem conta. És manietado pelas vozes que te rodeiam. Já nem distingues os rostos de quem te interpela. Amigo ou inimigo já pouco interessa desde que te juntes ao coro do progresso. Dão-te a mão e esperas concordância ou sustento, mas tiram-te as forças da identidade. Curam-te as feridas e prometem-te o elixir da juventude para te roubarem o vigor da convicção. Cantam-te os sonetos de esperança mas formatam-te o destino. E tu segues, resignas e cumpres. E tu choras, ris e acenas. E depois perguntas-te "mas quem são eles" sem perceberes que tu já fazes parte do todos nós.

terça-feira, 10 de junho de 2025

Passageiro

 Do centro para este, neste dia de celebração e partilha, permito-me ir à descoberta de caminhos menos trilhados, povos abençoados e amizades longínquas. Permito-me a ligeireza da mente despreocupada e do repouso sazonal que só o processo de viagem nos pode proporcionar.

Os montes e planícies de um Portugal esquecido são acordados pelo trovão do comboio que ecoa e faz soltar a ferrugem dos velhos carris.

 São ermos compostos por velhas oliveiras, pinhais e eucaliptos, feno e solo arenoso. Verde e dourado polvilhado pelo gris. Pequenas elevações e baixios com uma ruína ocasional, algumas terras ao descuido das mãos que prosperaram. Outras com sobreiros desnudos que resistem ao sol escaldante do verão. 

Lugares tão antigos como as escaramuças seculares que por aqui se passaram, jazigo de sonhos de conquistas, de reis e barões, guerreiros e ladrões. Homens de convicção raiana. Pequenas aldeias a servir de fortes e espiãs.

Por agora sigo em direcção à fronteira onde outrora nos esperava o inimigo.

sábado, 26 de abril de 2025

Pátria

 Mais do que o eu, o nós. Mais do que um ruído é uma voz. É o resistir aos elementos que moldam a geografia, aos intentos que nos reduzem. Inveterado resistente aos cantos de sereia e de invasão, obtuso bastião de terras de ninguém.

Humildes obreiros que ousaram sonhar um sonho seu. Único fervor imbuído na coragem dos antepassados e no futuro da incerteza, carregaram consigo o padrão da descoberta e o espírito da aventura. O sonho de dar o mundo ao mundo, o de trazer para próximo o longínquo e provar a ciência contra o dogma. O anfitrião e convidado. O grande diplomata e o pequeno guerreiro.

História de órfãos e irmãos desirmanados que desfilam nas várias eras do homem, fado revelado entre a guerra e a dor, a conquista e a derrota. Canções de quem soube sofrer vassalagem e submissão e de quem se sacrificou nas revoltas da identidade. 

Não mais que o meu direito natal, pela língua que me assiste. Pela irmandade de quem foi fazer frente ao mais feroz dos seus inimigos. És mais do que o sítio que me viu nascer, será o meu leito que foi abençoado pelas arvores do eterno, será sempre o coração pelo qual me devo bater.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Teixo


Vinda do solo e da chuva,

Embalada pelo mão do druída

Rugosa e obstinada

Recusa a conformidade da estética


Refúgio animal e sacro destino

Porta vida e porta de morte

Frágil equilibrio universal

Sombrio recosto de Hades e alimentada em esquecimento


Companheira de Hecate

Forjada na força da vontade

E dos mesmos elementos que compõem a vida

Tem o mesmo vigor que o sonho de quem o plantou


Milenar obelisco de carbono

Elo perdido de outras eras

Sentada no trono da criação

Entre os reis do eterno e a ideia do efémero


terça-feira, 12 de novembro de 2024

miser

As lágrimas que me percorrem o rosto não demoraram muito a aparecer. São a resposta imediata da minha procura de redenção. Talvez se me punir mais um pouco possa vir a aspirar uma réstia de esperança. De ser melhor, de ter mais, de preencher o vazio de mim. Preencher o espaço que deixamos em aberto para outro de nós, que oposto nos pareça e que nos atraia pela semelhança de ideais.

Quanto de mim terá que de esmorecer perante o tempo? Quanta maleita me porá à prova e quanta resiliencia ainda tem este corpo sem se quebrar? Escravo de deus, um Jó de piedades e futuros perdidos. Eu sou o verdugo insaciável pronto a revelar o meu cilício.

Porém, e por um egoísmo inabalável ou pela teimosia animal da minha raça, arrasto esta procissão de desvirtude, esta canção venenosa, esta ladaínha de comisero e penitencia porque no fundo o que perdura é este medo violento e assolador da escuridão. Não porque temo a solidão. Mas porque temo não ter mais luz para dar.

sábado, 27 de janeiro de 2024

grito

 São verdadeiramente os sinais dos tempos. Aqueles mesmos, descritos há milénios em vetustos livros que ganham pó na memória do homem. Nessas escrituras que alguns consideram balelas e outros o mais íntimo sacrossanto, eu indeciso, retiro conclusões directas do valor nato das suas frases transcritas. Conclusões apoiadas na minha bússola ética e moral, imperfeita e parcial que apenas conhece esta realidade, esta vivência.

A lei do mais forte impera impune. A natureza do homem não foge à do irracional, e mesmo se utilize mais protocolos, sinapses e mordomias estamos no mesmo patamar. O da violência animal crua e sem pudor. Mas a nossa capacidade inventiva e curiosa conseguiu criar novos instrumentos de tortura e formas de escamotear a condição humana. Escravos de escravos de escravos.

 Da nossa necessidade de nos conectarmos com o mundo e outros como nós, nasce o seu oposto. A renúncia ao contacto, o isolamento dentro de si. Assim se cortam laços e se quebram comunidades. Estamos condenados às eternas dualidades creio. 

Onde um dia encontrámos forças no volume dos nossos números, hoje encontramos dissidência. Em singular somos geniais em plural somos deploráveis. E nós adeptos de uma evolução exponencial corremos para uma crise existencial. Tão expeditos a aprender, tão cegos a ver os erros de ontem. Novamente dúbio e duplamente ridículo.

Lá vem o "profeta do apocalipse", esse pessimista de gema que se farta de gritar lobo por essas aldeias fora, o inconveniente do costume ou até o pessimista nato. Se assim é a única forma que me faço ouvir então espero que a minha voz nunca se cale pois já o disse e repito: tenho fé no homem mas não na humanidade.